p1Fernando Zarif: uma obra a contrapelo
José Resende

As artes plásticas têm, com raras exceções, uma presença muito acanhada em âmbito público se comparadas a outras manifestações. Entretanto, é inegável a ampliação, em todos os níveis, do meio de arte no Brasil a partir da década de 1980: da quantidade e diversidade de produções à abrangência das instituições, do mercado aos museus, assim como o do crescente número de pessoas envolvidas com a produção de arte, decorrência da proliferação de cursos em universidades que vêm promovendo não apenas a formação de muito mais produtores que, a cada ano, surgem nas mais diversas regiões do país, assim como daqueles que se dedicam a história, teoria e crítica de arte, fenômeno recente e inédito na produção de arte aqui desenvolvida. Uma consequência imediata dessa ampliação foi a configuração mais concreta da carreira profissional.

A contrapartida desse fenômeno é o que se poderia chamar de uma certa “especialização”, um isolamento com relação às outras manifestações e um rebaixamento de ambição quanto ao próprio trabalho como instrumento de intervenção cultural, transferida para o reconhecimento determinado pelo número de solicitações de participação profissional e evidência na mídia, somado ao aumento de valor atingido e praticado pelo mercado por suas obras.

A periodização histórica em décadas é sempre um critério arbitrário e impreciso. Entretanto, pode-se afirmar que há, por coincidência, uma transformação muito grande nos objetivos e talvez na própria concepção do que era fazer arte no país na passagem dos anos 1970 para os 1980.

Na década de 1970, era comum, tanto para artistas que já atuavam desde as décadas anteriores como para quem iniciava o desafio de ver o próprio trabalho inserido no debate cultural, no qual, de forma sempre muito mais constitutiva, participavam a produção literária, a cinematográfica, a teatral e inclusive a musical, acrescentando-se aí a produção acadêmica de distintas áreas que passavam ao domínio público de forma mais acessível, rompendo os muros da universidade, primeiro por meio da chamada “imprensa nanica” (Opinião, Movimento, Pasquim, Nave Louca e até, nas artes plásticas, Malasartes), em seguida absorvida pela grande imprensa, que levou o debate cultural a uma evidência e penetração até então raras no país.

As causas são difíceis de ser determinadas, mas o fato que se constata é que, a partir do início da década seguinte (anos 1980), reverte-se esse movimento. Todas aquelas conquistas, ao se tornar habituais, arrefecem o debate e vão perdendo poder de interferência.

No caso das artes plásticas em particular, as transformações vieram a galope. Constata-se o aparecimento de uma quantidade enorme de novos artistas logo no início da década de 1980 que, com uma velocidade até então inédita, foram absorvidos pelo mercado, passam a participar da programação dos museus e ganham projeção em salões e bienais. Além disso, com agilidade e facilidade muito grandes, passam a integrar circuitos internacionais, fato até então muito raro, restrito a um número de artistas brasileiros que provavelmente se podia contar com os dedos de uma das mãos, no máximo das duas.

É incrível que uma transformação dessa grandeza se tenha dado de forma tão repentina. Mas o que se torna evidente nesses novos artistas, independentemente inclusive da qualidade ou pertinência das produções, são os objetivos como “profissionais”, a determinação na constituição de uma carreira. Espantosa também foi a rapidez com que se estruturou um solo que lhes acolhesse nesse propósito, mesmo que débil de início, mas que sem dúvida se foi consolidando conjuntamente ao investimento de “profissionalização” que passa a ocorrer.

Esse fenômeno é semelhante ao que acontece, por exemplo, com os best-sellers na indústria editorial, em que o valor de mercado e a evidência na mídia são produzidos de forma completamente desvinculada de qualquer compromisso ou atenção relativa ao teor ou qualidade do que se escreve. Nessa estrutura “profissionalizada”, o fator menos presente e interferente é a própria produção, pois o mais determinante é a eficiência com que espaços são ocupados para promover o “profissional” artista.

Por incrível que pareça, Fernando Zarif pertence à geração dos artistas que surgem nesse processo. Entretanto, o que vai caracterizá-lo é exatamente uma posição adversa, antagônica, resistente e oposta a tudo isso. Várias razões podem ser arroladas na cisão que se processa entre Fernando Zarif e o chamado meio de arte. Mas a verdade é que ambos se ignoraram completamente.

E não porque houvesse da parte do Zarif algum isolamento – pelo contrário, sua presença era ativa e atuante, colaborando e intervindo em manifestações muito diversas que vão do teatro à musica, ao rádio, como artista gráfico, escrevendo; um artista de múltiplas habilidades. Sua atividade evidenciava quão isolado se encontrava o meio de artes plásticas, que, preconceituosamente, sempre o desconheceu, salvo raras exceções de alguns poucos colegas artistas que admiraram e se mantiveram atentos a sua extraordinária capacidade e persistência em conservar uma produção cotidianamente acumulada, que se avolumou muito nos seus 50 anos de vida.

Esta publicação é um recorte dessa vasta produção com a perspectiva de indicar, excitar a curiosidade, atrair o interesse sobre este artista, cujo trabalho potencializa a ideia e o conceito do desenho, que se manifesta através de diferentes meios: traços, cores, coisas, papéis, telas, lentes, esparadrapos, pelos, sangue, pinturas, colagens, objetos, sons, fotos, filmes, fantasias, sonhos, denúncias, prazeres, dores, formas de ver e de fazer ver. Tudo isso sem verborragia, evidenciando seu potencial inteligente do olhar.

Junto às reproduções de trabalhos, reuniram-se textos de autores que conviveram com seu trabalho e indicam uma cronologia que, embora breve, informa de que maneira sua obra foi sendo notada e compreendida.

… trecho do livro (págs. 15 a 27) em pdf – sem númeração nas páginas

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