REPRODUÇÃO DO TEXTO DE JOSÉ RESENDE PARA A EXPOSIÇÃO O CORPO HUMANO E OUTROS CORPOS
MAM, Rio de Janeiro, 1995
O corpo humano e outros corpos
Este texto é uma observação sobre a atitude de Fernando Zarif ante a arte e a cultura. Não pretende, portanto, apresentar ou ser uma crítica do seu trabalho, mas falar apenas daquilo que o antecede.
De forma muito particular, há uma disposição quase compulsiva, que se processa cotidianamente, no ato de desenhar. Um corpo a corpo diário com a expressão que se acumula e aprimora ininterruptamente.
O resultado desse ato de desenhar, no seu caso, não deveria receber o nome de desenho – um produto, uma coisa. Primeiro, porque desenhar aqui é uma experiência, fruto de uma disposição específica perante as coisas e o mundo; segundo, porque essa ação é, na realidade, a combinação de dois momentos: o fazer e o olhar sobre o feito, que lhe atribui sentidos dentro de uma cadeia infinita de significados; e, terceiro, porque há uma certeza plena de que tal prática é um fio condutor confiável para pensar questões que vão da religiosidade à história, do cotidiano à filosofia, de reminiscências da crônica familiar a alusões eróticas.
Surgem significados, os mais diversos, que tecem tramas complexas e inesperadas. O desenho aqui não é ilustração desses sentidos, mas, ao contrário, é através desse desenhar que as associações se produzem. E admiti-las como suficientemente confiáveis, como manifestações desses sentidos, é a especificidade de seu relacionamento com o trabalho.
Compulsivo e verborrágico a um só tempo, o desenhar assume várias formas: do traço à figura, ao objeto, ao cenário e até mesmo à arquitetura de um texto ou de um filme. O desenhar é o móvel do trabalho do Fernando.
Aliás, chamar de trabalho talvez seja errado; quem sabe não seja nem mesmo uma escolha, mas a condição para suportar o mundo (às vezes até com o humor ferino que lhe é peculiar).
A originalidade, aqui, não é um valor, é o fator imprescindível da continuidade desse desenhar, pois, como qualquer traço sobre o papel, repeti-lo é sempre criar já um outro, jamais o mesmo. No caso do Fernando, o mesmo se dá do traço à escultura, à pintura, a tudo, pode-se dizer, pois essa é sua forma de produzir: quem sabe até sua forma de ser.
Em relação a sua produção, fica difícil localizá-la, como habitualmente se faz com o trabalho de outros artistas (o que, aliás, é sempre um péssimo hábito), mapeando-lhes referências em contextos determinados. É um trabalho retiniano que tem relação com Duchamp, um romântico expressionista que cria objetos com rigor construtivo, um agnóstico curioso sobre as religiões, um cético que adora verdades, desde que sejam passageiras.
Culturalmente, esse trabalho possui uma perversidade salutar: pode-se dizer tudo dele, menos que queira ser um trabalho bem-comportado.
… trecho do livro (págs. 160 a 173) em pdf – sem numeração nas páginas e sem páginas em branco