QUEM É FERNANDO ZARIF?
Barbara Gancia
Artista, desenhista, escultor, pensador, frasista, letrista, escritor, dançarino, esteta, minha mãe? Por períodos intermitentes, incendiou o maçarico que usaria para marcar sua passagem pela terra escrevendo de forma abundante.
Seria algo comedido definir sua produção como escatológica apenas no sentido grego da palavra, como um jorro de vida que terminava heroicamente; enxergá-lo como um apologista do apocalipse, um visionário ou um manipulador de mitologias. Aprendi na prática que aplicar qualquer forma de teoria reducionista, ou tentar conter o gigante de alguma forma, terminaria inevitavelmente em bad trip.
Digamos, então, que seus textos eram um meio de transporte ao fim dos tempos, um lamento existencial pelas sorte e má sorte (hazard) da condição humana, de sua própria dualidade, de todos os aspectos estéticos que se unem, se entrelaçam, se tocam, dançam ou eclodem naquilo que resulta em vida, assunto que o divertia e o perturbava.
Vitalidade que ora ajudava o olho do artista a esclarecer e a traduzir para nós, leigos, ora o fazia querer se distanciar da realidade para outras dimensões, em que o grotesco por demais palpável de ser humano do ser humano não fosse tão aterrorizante.
Fernando Zarif era tão fascinado por palavras quanto por imagens. No que tange a meu convívio com ele, talvez por obra de ofício, que me faz operar inteiramente no campo da letra impressa e das ideias, nossa troca era quase inteiramente cerebral. E talvez por isso eu servisse como terreno de provas para seus trocadilhos (o que os ingleses chamam de puns), de preferência na língua inglesa mesmo, cujo vocabulário ele dominava com extrema destreza, e que eram exatamente do mesmo nível, em genialidade e profusão, daqueles produzidos por Millôr Fernandes.
Sei da heresia que estaria cometendo ao fazer uma declaração dessas em vão. Diferentemente de Millôr, Fernando não chegava perto da política – não tinha o menor interesse pelo assunto. Sua frivolidade era assumida, diria escancarada; podia dar-se a esse luxo.
Fazer rir, gargalhar, rolar no sofá, ter ataques deliciosos de riso: coisas que eu considero algumas de suas maiores qualidades artísticas, muito superiores às de muitos humoristas que hoje andam por aí; e uma das heranças que, infelizmente, nós não iremos reproduzir mais.
Ele era capaz de passar o dia inteiro, e fez isso muitas vezes, concebendo piadas sobre esta que vos fala. Trocadilhos que me colocassem abaixo do capacho eram especialidade da casa. Pena que consumi toda a minha memória entre tonéis de carvalho na Escócia. Eu deveria ter colocado no papel enquanto estavam acontecendo. Mas frequentemente eu telefonava para ele ao terminar de escrever minhas colunas da Folha [de S.Paulo] para pedir que me auxiliasse com o título. E ele não precisava terminar de ouvir a explicação sobre o assunto do dia para ir soltando coisas como “De Bobbit a Lorena não tem nada” (sobre a mulher que cortou o pênis do marido, John Bobbit, e jogou o membro em uma estrada para ser devorado por formigas).
Seus textos também tinham toques de humor. Creio que toda a obra de Fernando sempre deve ser enxergada sob essa ótica. Embora encharcada de uma carga dramática por vezes insuportável – propositadamente, é claro – há sempre um “trocadilho” visual, uma mensagem anedótica, um tom jocoso a respeito de tudo que ele fazia. Mesmo seus textos, carregados de tintas de difícil digestão – depois de ler duas páginas, você sai com a sensação de ter comido uma feijoada de javali –, sempre trazem sacadas geniais, do tipo que faz o leitor abrir um sorriso maroto apenas por se ter identificado ou conseguido entender a piada ali contida.
Como em todos os outros aspectos de sua obra, os textos de Fernando eram produzidos em baciada e, muitas vezes, no horário em que os moradores de Xangai estariam tomando o lanche da tarde. E era perto dessa hora (para ele, esse negócio de fuso horário não era uma convenção digna de respeito) que o telefone da minha casa tocava, e eu era convidada a conhecer longas e densas histórias, que haviam sido paridas naquele instante e que eu deveria ouvir por, digamos, 45 ou 50 minutos, sem nenhuma interrupção.
Podia ser uma narrativa como a da freira… Ou a da… Havia muito conteúdo feito com o objetivo explícito de chocar, ou então, o que também era muito frequente, surgia uma associação de ideias riquíssima, emendadas umas nas outras feito uma fábrica de salsichas, mas que serviam para que ele desse vazão aos impulsos criativos, canalizando-os de alguma forma. E havia muito a ser escoado. A fonte era interminável.
Minha associação de ideias, ou a sua, pode ser uma bobagem qualquer sobre problemas cotidianos, ou até sobre as origens mais profundas do pensar. Comparativamente, a de Fernando Zarif seria uma viagem – tudo junto e misturado – de lsd pelo mundo de Pasolini, Chaucer, Ken Russell, Bertrand Russell e Jack Russell – este último só para não perder uma piada típica do meu amigo.
De Ésquilo a Monty Python, passando por Bukowski, Jean Genet, ou, dependendo do dia ou do humor, das narrativas do Inferno de Dante e do Ulysses de Joyce, sem deixar de rondar os quintais da Odisseia de Homero ou os versos sagrados do Qur’an misturados com, sabe lá, literatura russa, Fernando jogava tudo para fora sem nem sequer consultar as dezenas de enciclopédias, livros sagrados, de consulta, gibis, revistas pornôs, edições diversas da Bíblia e da Placar, exemplares da revista Seleções e o diabo a quatro que possuía jogado entre estantes, mesas e o chão de seu apartamento.
O mais impressionante é que, no meio daquela bagunça toda, ele era capaz de encontrar justamente o livro que procurava, na primeira tentativa, quando queria provar textualmente o que estava dizendo (mesmo que ninguém tivesse perguntado).
Minha memória me trai, mas meu coração não. Não entendo nada de artes plásticas e não sei julgar o que ele deixou em termos de legado nesse campo. Mas, para mim, a sabedoria e a intuição falada de Fernando, sua cultura geral, seu extraordinário senso de humor e a associação de ideias que ele transformava em grandes épicos escritos talvez venham a ser a obra de arte mais importante com a qual eu já tenha convivido.
… trecho do livro (págs. 122 a 133) em pdf – sem numeração nas páginas e sem páginas em branco