p5
REPRODUÇÃO DO TEXTO DE ARNALDO ANTUNES PARA O FOLDER DA EXPOSIÇÃO CHUVA – DESENHOS E CARTAS
Galeria Millan, São Paulo, 1990

Chuva – desenhos e cartas

“A ordem inferior é um espelho da ordem superior; as formas da terra correspondem às formas do céu; as manchas da pele são um mapa das incorruptíveis constelações; Judas reflete, de algum modo, Jesus.”
Jorge Luis Borges, Três Versões de Judas

Rostos em nuvens crianças jovens adultos velhos desde sempre tiveram a mania de ficar vendo como um cinema. Esse exercício, que parece refletir às avessas a tensão entre figurativo e abstrato, constitui uma educação do olho no espaço/tempo: formas que se transformam a cada instante, gerando outras que irão desfazer-se em outras até que chova.

Os desenhos da primeira sala da exposição Chuva, de Fernando Zarif, não se parecem com nuvens. O que há de coincidente entre eles e as nuvens não é a representação delas, mas a descoberta de um processo comum de gênese das figuras, a partir de matéria amorfa.

Os desenhos de Zarif se parecem com nuvens no que eles têm de precário, enquanto suportes de rostos mãos barbas orelhas corpos animais e objetos inusitados. A ironia de seu gesto está em lograr uma associação entre o acaso/vento que forma e deforma as nuvens e o que move a mão que pinta o papel.

O que o olho cria/capta de uma nuvem que não seja nuvem parece corresponder a fragmentos de inconsciente que emergem até a consciência. As nuvens de Zarif parecem forjar a formação de uma consciência da cultura, onde várias referências (Zeus, touro, Salomé e os encolhedores de cabeças, Shaman e o bebê-nuvem, Tristam Shandy, Apolo, o Dervixe, Toscanini, Dostoiévski, Judas, Van Gogh, a mãe de Flávio de Carvalho etc.) convivem, estabelecendo intersecções entre o sacro e o profano, o mito e o cotidiano, o arquétipo e o moderno.

Quando as nuvens deixam de ser nuvens, a linguagem do olho é substituída pelo contato físico: passa-se à sala seguinte da exposição por um corredor ao lado de um jardim, onde chove constantemente. Chuva — a única forma de o céu tocar a terra.

Na segunda sala, Zarif expõe mapas impressos, de várias épocas e lugares diferentes, nos quais sobre as formas desenhou rostos, rugas, corpos, pés, Fernando Pessoa ante o primeiro poema de Mensagem, o dedo de Deus tocando o de Adão.

Fica a questão: As figuras humanas desenhadas sobre os mapas foram descobertas (como a gravidade, a América, a rotação da Terra) ou inventadas (como a lâmpada, o avião, a máquina de fazer pipocas)?

“Criar não é tarefa do artista. Sua tarefa é mudar o valor das coisas.”
Yoko Ono, citada por Hélio Oiticica na Navilouca

As nuvens de Zarif são da mesma matéria que as figuras vistas nelas: desenhadas. Ele poderia desenhar sobre fotos de nuvens. Mas o céu é o céu. Já os mapas da segunda sala são objetos do mundo transformados. Do mundo e para retratar o mundo.

Com suas duas salas separadas pela passagem da chuva, Zarif compõe um poema ambiental onde a relação entre céu e terra deixa de ser vertical e simultânea e passa a ser horizontal e sequencial. Parábola da equação de Hermes Trismegistro: “O que está embaixo é como o que está no alto”.

No cartaz, nuvens pintadas cobrem exatamente as formas de todos os continentes e ilhas de um mapa-múndi, deixando apenas os oceanos descobertos. Um olhar mais atento nota que os nomes desses oceanos foram impressos invertidos.

Fazer o que faz sentido: chuva em todas as terras.
Nenhuma chuva no mar.
Para não chover no molhado.
Para provar de uma vez por todas que um poema pode ser feito sem palavras.

… trecho do livro (págs. 86 a 103) em pdf – sem numeração nas páginas

<< VOLTAR