Sem título, s/d acrílica sobre tela 80 × 100 cm (díptico)

REPRODUÇÃO DO TEXTO DE ERIKA PALOMINO, PUBLICADO NA REVISTA KEY
SÃO PAULO, 2011

Obrigado eu

“Fernando Zarif, todo em preto, todo grandioso, nasceu em São Paulo, em 2 de abril de 1960, e está vivo até hoje. Ainda bem. Se você saiu de casa nos últimos vinte anos, e foi aos lugares certos, sabe de quem se trata. Mais do que mero personagem, ou simples ‘figura’ (diriam os caretas), o rebelde iconoclasta que flana por seus restaurantes, galerias e clubes noturnos da cidade delineia, com brilhantismo, ansiedade e falta de paciência, os tempos de hoje.

Faz pouca ideia de sua relevância quem o vê entre um dry martini e uma tônica diet. Não por seu passado, sobrenome ou herança. Fernando vive o já, o agora. E nunca se vai ouvi-lo por aí laureando glórias antigas, citando (os muitos) amigos famosos, festejando conquistas. Ele não precisa de nada disso e abomina quem disso precisa. Não está na Joyce, na Vogue, na key, mas é amigo de fé das poderosas editoras dos três veículos. Na entrevista que insistimos por dele tomar, diz apenas que já trabalhou com artes gráficas e plásticas, e fez ‘deliciosas festas e ótimos amigos’.

Chame do que quiser: excêntrico, louco, nervoso, chato, biruta, ainda que seja o terror e o pânico dos garçons de todo o planeta. Está para surgir amigo mais leal, fiel e cúmplice. Valores que, sabemos, estão fora de moda. Zarif não liga para a moda. Está sempre de preto. Yohji, Comme, Margiela. Ou de verde e rosa, como na recente incursão pelo universo do samba, caindo de boca na Ala dos Artistas da Mangueira. A energia do samba é o combustível do amor. E do amor – e da dor – ele sabe tudo. Essa coisa de escova de dente compartilhada não é com ele. Fala sério (para usar uma de suas vinhetas)!

Ariano, briguento, ascendente em Câncer, Vênus em Aquário, Lua em Gêmeos; Rato, no horóscopo chinês. O resto é lenda urbana. Começou a pintar com sete anos de idade, estudou arquitetura (obviamente, largou antes de concluir). Orgulhosamente autodidata, faz pintura a óleo há quarenta anos. Expôs polaroids em 1982 na Pinacoteca; fez performances até 1984 e chegou a ter programa de rádio.

Morou em Paris; fala o idioma de modo irritantemente perfeito – pediu para não mencionar isso aqui: ‘sou low-profile’. Agora, depois de quatro anos sem trabalhar (não sem produzir), anda fazendo emocionantes cadernos de desenhos. ‘São quarenta, ao todo, com cem páginas cada. Já fiz uns mil desenhos, tô no décimo caderno.’ Quem vê seu trabalho – amigos, ‘happy few, we band of brothers’ – comove-se tanto com o furor criativo quanto com a qualidade do material. Ele tenta explicar: ‘Sou Xangô de frente; as costas eu não sei’. Dieter, seu tímido gato preto, concorda: ‘Quero morrer seu amigo!’.”

Este texto foi publicado em setembro de 2007. A pedido de José Resende (um de meus ídolos, mais um presente dado pelo amigo), eu o transcrevo aqui porque, segundo ele, possivelmente foi a última entrevista dada por Fernando Zarif.

E ele nem queria dar entrevista alguma. Insisti, e ele mandou alguns parágrafos. O gancho da matéria eram os cadernos que ele fazia à época, e até o final de sua vida; a força motriz foi nossa raiva pela exposição dele que miou no Rio, pois ele acabara de brigar com a galeria; o gatilho foi minha visita ao famoso apartamento do Itaim, que ele reabrira para então me apresentar. Estava tudo intacto. Ele simplesmente fechara a porta. De uma das fases de sua curta mas intensa existência.

No momento do fechamento da edição, Zarif estava internado. E eu com um medo danado de aquilo virar um obituário. A revista saiu, e ele também saía do hospital, gato de tantas vidas. “Eu sou foda”, ele dizia a cada vez que ressuscitava. Eu pilhava de volta: “Seus médicos é que são bons!”

Há muitos relatos de amigos de Fernando Zarif sobre o apartamento, o que lá rolava, quem frequentou. Mas eu não cheguei a pegar essa época. Eu o conheci depois, nem sei quando, nem como. Possivelmente na noite. Afastamo-nos um pouco, quando eu virei mais diurna, depois nos aproximamos de novo para nunca mais desgrudar.

Nos falávamos todos os dias, diversas vezes, nos visitávamos todo o tempo. Ele cozinhava para mim, me mimava. Ele me acolhia e me tirava das catacumbas de meu ser quando necessário. Éramos como dois irmãos, do tipo de pessoa que fica lado a lado sem precisar falar. E nunca foi por falta de assunto.

Quando ele começou a ficar doente, eu lhe dei uma bronca: “Vê se não vai morrer e me deixar nesta chatice”. De quando em quando, ele me ouvia, e deu certo por um tempo, mas ele realmente queria ir e cumprir sua profecia de sair daqui aos cinquenta anos. Com sua partida, o mundo ficou uma caretice, nesse reacionarismo, nesse neoconservadorismo de merda em que estamos.

Esta é a primeira vez que escrevo sobre ele depois de sua morte, e por isso peço desculpas ao leitor pela pieguice. Quis escrever antes, mas não consegui. Bloqueei. Seguiram-se tantas palavras lindas e bem escritas por alguns de seus companheiros ilustres, muitos deles amigos de velha guarda, e eu nunca quis parecer arrivista, puxa-saco (odiávamos essa categoria) ou bff de última hora. Mas a gente sabe o que tínhamos, e pra sempre.

A última vez em que nos falamos foi na antevéspera de sua morte. Eu estava em Israel quando tocou meu telefone, o nome dele apareceu na tela do celular. Gelei, achando que fosse a Maria me dando a notícia de sua morte. Mas era ele, com seu “Alou” característico, dizendo-me que saíra do hospital, a voz crispada, que nos últimos tempos poucos entendiam (a verborragia e a edição dos assuntos, sempre cortados, também era difícil para a maioria dos mortais; não para mim, nunca). Combinamos de passar o Natal juntos, eu chegaria dia 24 de dezembro. Logo de manhã, já em casa, vindo do aeroporto, meu telefone tocou. Logo atendi, animada. Mas não era ele. Era Maria dando a notícia que ele havia morrido. Meu mundo caiu. Fui a seu enterro com uma roupa que ele gostava, como se fôssemos sair juntos. Nunca mais fui a mesma. Nunca tinha experimentado esse nível de saudade, que não passa, você só a esquece de vez em quando. Penso nele todos os dias, e ainda não parei de chorar aos gritos e soluços.

Como ele nunca havia conseguido escolher um de seus trabalhos para mim, não o tenho em minhas paredes. Guardo apenas a notícia de sua morte publicada no jornal, muitas fotos (uma que tiramos no cemitério, num rolê de muitas risadas), muitos causos e, sobre a minha mesa, um carimbo, dado por ele uma vez em que estivemos juntos no apartamento do Itaim, onde se lê escrito: “Todo pensamento emite um lance de dados”, final do poema de Mallarmé, cuja adoração também compartilhávamos. Tenho como motto outra de suas muitas máximas: “Foda-se” (ah, o título e o final do artigo acima são também chistes com coisas que as pessoas falam e que a gente adorava brincar de odiar).

Viva Fernando Zarif. Fico feliz que sua obra possa agora ser vista e talvez compreendida. A gente se vê por aí, meu amor. Espera que já, já estou chegando.

… trecho do livro (págs. 222 a 235) em pdf – sem numeração nas páginas e sem páginas em branco

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