MARIA BORBA, BIA LESSA E JOSÉ RESENDE

Não havia, por parte do Fernando, uma ideia de como mostrar os cadernos. Como tudo que ele fazia, foram produzidos compulsiva e freneticamente, embora de forma metódica, pois diariamente eram preenchidos e assim se avolumaram (quarenta em menos de um ano). Acrescente-se: sob o crivo de um olhar crítico e exigente. A ação espontânea e fluída do fazer era, em seguida, submetida à aprovação rigorosa para não incorrer em repetição de procedimentos e até mesmo narrativas, tudo que pudesse contrariar sua convicção no inaugural do fazer ver através das imagens.

A reprodução gráfica dos cadernos na forma de impressão era inviável; desmembrá-los, mostrá-los em vitrines, ou emoldurados, um crime. Conversas e mais conversas tentando buscar uma solução. Em uma delas pensou-se em permitir o manuseio dos cadernos pelos espectadores sob a vigilância de outros que aguardariam a vez para fazê-lo. Uma solução cênica, cujo cenário seria o próprio teatro vazio. O manuseio seria filmado e transmitido ao vivo em telas: a intimidade de folhear os cadernos, mas com vigilância.

Apresentar aqui esse evento deve, por coerência, trazer o eco desses pensamentos que, a rigor, se articularam no fazer, na confiança entre nós e também pela urgência de executá-lo afinal. Mas as conversas sempre se deram mediadas pelo Fernando, e entre nós, diretamente, a bem da verdade, ocorrem aqui pela primeira vez.

José Resende

Os cadernos pressupunham uma regra relativa ao tempo. Um cotidiano. Um desafio. Um espaço a ser preenchido. Como um diário, um relato. Houvesse ou não presente ali uma iconografia pessoal – pouco importava – em primeira instância, o compromisso era com o desenho, com a arte, com a qualidade da imagem pelo humor, pelo escárnio, pela beleza, pelo inusitado e pela originalidade da associação.

Havia um ritual ao mostrar os cadernos: vê-los um a um (eram numerados), folha por folha, sob o olhar vigilante do artista e, caso escapasse algo que deveria ser notado, ele prontamente avisava.

Como expô-los? A meu ver, o espectador não deveria de forma alguma ser privado da oportunidade de ter uma intimidade que o desvendar dos cadernos exigia. Ao mesmo tempo, a presença atenta do Zarif assistindo e acompanhando de perto o contato com os cadernos, o que naturalmente barrava e contrariava esse movimento de aproximação mais íntima, também fazia parte do trabalho. A ideia de a exposição virar uma performance veio dessa ambiguidade. Viabilizar o contato direto com os cadernos, mas sob a vigilância do artista.

Realizar isso em um teatro era remontar essa situação ambígua, pois o local em que os cadernos eram vistos atravessava a plateia e não estava no palco. Ao mesmo tempo, a ação de todos que folheavam os cadernos era gravada por câmeras. Uma espécie de voyeurismo ao quadrado.

E o Zarif ainda fazia o ambiente ficar atordoante, através de um som inaudito que brigava para ser o personagem central, mas que era absoluta e inevitavelmente lateral para quem se entretinha com os desenhos. Mesmo assim, distraía e dissolvia a ação invasora de quem filmava, gerando imagens que ainda eram projetadas como parte do espetáculo.

Bia Lessa

Para mim era um tempo – na realidade, um instante. Um instante de diálogo com o que estava ao seu alcance, com o lápis, com o pelo do corpo, com o esparadrapo e até com o próprio sangue. Não havia projeto, não havia processo, havia apenas as coisas e a transformação delas em produção imediata. Como se concretiza o instante: eterniza-se o instante.

A sensação que eu tenho é de que não havia o espaço, havia uma compulsão de criação que se realizava onde houvesse espaço. Até a compra dos cadernos era compulsiva, e o espaço da criação poderia acontecer em todos os lugares a qualquer momento, mas sempre instantâneo. Isso era uma dificuldade para mim, que trabalho com processo e com algum planejamento – teatro, ópera necessitam de um tempo, um tempo do coletivo, várias coisas precisam andar juntas. E ele propunha a cada dia ideias fechadas e definitivas.

Eu nunca tinha pensado nisso, nessa urgência. Faz sentido, muito sentido. Engraçado, pensando agora, os cadernos de alguma forma retêm o trabalho, guardam, eles não ficam como os outros, perdidos pelos ambientes, folhas soltas, pequenas esculturas pelas mesas, pelo chão, telas espalhadas pela sala. O caderno tem começo, meio e fim. Abre-se e fecha-se. Acho bom tocá-lo sem melancolia, apenas tocá-lo. Ele me deu um caderno. O meu era menor (como eu – pequena – ele dizia). Mostrava mas não me entregava, “quero fazer mais umas coisas” e assim foi. Ficou inacabado, uma porção de páginas em branco. Deu um outro para Maria [Borba], que dizia que era sua filha, se não me engano finalizado – “uma espécie de herança, talvez”. Os cadernos tinham uma ordem, ele os guardava na mala respeitando essa ordem, uma sequência, e havia muitos que deixava de fora.

De fato, a nossa amizade passava pelo trabalho. Por exemplo, nós nos conhecemos e nos tornamos próximos (tão próximos!) sempre através do trabalho. O trabalho era o que nos unia. Não que não houvesse amor puro – apenas amor –, mas esse amor solto vinha das risadas, dos gritos, da cumplicidade que o trabalho conferia. O que quero dizer é que, de fato, esse olhar atento, mostrando e comentando cada trabalho, e vigiando a nossa reação (eu me sentia muitas vezes vigiada), a fazia parte da amizade. Mas isso não interessa. Interessa esse desejo de mostrar seu trabalho como domínio sobre o tempo e sob sua vigilância. Talvez a ideia de instante volte aí. Ele gostava de presenciar o momento em que a revelação se dava. Porque nos seus trabalhos há sempre uma revelação, uma ironia escondida, uma beleza suave a ser encontrada, sempre um raciocínio a ser contemplado.

Lembro que, na primeira ópera que fiz, pedi para ele fazer os objetos de cena. A história se passava num convento, e ele transformou as chaves da madre superiora em um grande aro de cobre com enormes cruzes (as cruzes eram as chaves). Em determinado momento, as freiras comiam, e o que elas comiam era macarrão preto, e assim por diante.

Mas, tentando voltar ao assunto da exposição, acho que eu não teria nada a acrescentar a seu conceito. Talvez só que, no momento em que ele colocava a música, a luz e uma certa dramaticidade, voltava a tocar na questão do instante. Porque para o espectador havia uma cena que, como cena, se modificava a cada segundo e não se repetia. Uma necessidade: a valorização de revelar novamente a beleza do instante e, ao mesmo tempo, a desvalorização desse tempo-instante. Não viu, perdeu. E, se perdeu, não tem importância, vai ver outra coisa daqui a pouco.

Bia Lessa e José Resende

As coisas vão ficando mais claras.

O tempo de um instante é perfeito para definir o fazer dos cadernos. Aliás, o fazer do Fernando em geral. Muito melhor que o cotidiano.

Principalmente, tratando-se de ideias fechadas e definitivas, descartando projetos ou processos, uma compulsão de criação que se realizava onde houvesse espaço e com quaisquer ferramentas que encontrasse. Havia sempre mesmo uma urgência. Suas palavras são precisas. Concordo plenamente.

Maria Borba

Há algumas coisas em que fiquei pensando e querendo compartilhar. Não é nada de novo. É o sentimento que tenho em relação à obra do Fernando: um artista que não tem ideia que seu trabalho vem completamente de dentro dele. Entranhado. Orgânico, nesse sentido. Puro – sem passar por filtro. Trabalhava com tudo o que tinha e tudo podia virar algo. Não tinha filtro, o que tinha era algo dentro dele que via coisas nas coisas. E com isso transformava as coisas. Fazia, desenhava, pintava com tudo, sem ideia. Só sentimento de algo.

Sobre os cadernos, tudo isso é verdade: o olhar dele nos mostrando o que deveria ser visto. O tempo cotidiano de fazer aquilo. Quase sistematicamente. Ele achava bom, percebia-se quando nos mostrava.

Concordo em não entrar na questão da finitude, do diário e tal. Fico com a vitalidade, a organicidade e o vigor daquele trabalho. Nem sempre completava os cadernos até o final. Fez um para minha mãe, pequeno como ela. Fez um para mim e para meu namorado, com algumas imagens que remetiam à física e ao amor/sexo.

Tinha o efeito do conjunto também. Os desenhos de um mesmo caderno, juntos, às vezes, relacionavam-se de algum modo. Todos “enfileirados e empilhados” naquela mesa longa. Ver de pé para também não demorar muito em cada página, em cada caderno. O ato de ver não com muita calma e sempre com a música. Um atrás do outro. Ambiente escuro. Luz só ao longo da mesa. Música muito alta. Algumas vezes ele nos acompanhando na “leitura”. Ter contato com a experiência que ele propunha. Imagens do que as pessoas viam eram projetadas no palco ao final da mesa. Podia-se ver o que se via.

… trecho do livro (págs. 212 a 221) em pdf – sem numeração nas páginas e sem páginas em branco

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