REPRODUÇÃO DO TEXTO DE DÉCIO PIGNATARI PARA O CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO PARA)DOXOLOGIA
GALERIA MILLAN, SÃO PAULO, 1989
Objetáveis
Muitos exploradores e aventureiros temerários já foram tentados a incursões por entre os interstícios e lacunas e brechas do verbal e do objetual.
Aventura, porque o objetual repele o verbal, faz-lhe objeções – não o contrário: o verbal sempre tenta seduzir o objeto.
Objetáveis ou objetores, o universo dos objetos é o universo icônico dos paramorfismos: formas semelhantes ou dessemelhantes se atraem, subtraem, traem. O que importa é estabelecer alguma forma de relacionamento, estabelesser.
Em tempos de mutação da arte, tal exibicionismo se torna obviamente explícito: entre um tratado e um tratamento, a diferença tende para um sorridente zero: veja-se o “Cheshire” do Zarif: um carrolliano sorriso lunar e gatuno na vidraça parece aliciar, gostosa e gozadoramente, uma cidade inteira da qual parece excluído. “Merry window!” – exclamaria Duchamp.
De Dada e Magritte, os trocadilhos paramórficos chegaram até a contracultura graças não ao gurumor Duchamp, mas ao oswaldiano Picabia: o ícone indicial da transa flagrada pelas plantas dos pés, adesivo popular de vidro de carro nos anos 1960-70, foi criação dele para capa da revista “Dada”, sub-rubricada “Lits et ratures”. A ignorância é aliada cocacolada do consumismo…
Mas nem tudo é paramórfico nas metáforas zarifianas; há um erossobrepsiquê puramente art nouveau pairando acima de um chip eletrônico cerebral na peça “O espírito deixa o corpo”. Software pairando sobre o software. Espírito antigo sobre o novo.
Estupenda metáfora cultural anticristã é a cruz de dados: minijazigo nu, onde o manto inconsútil do Cristo foi disputado em dispudados. Constelação cruciforme das cômicas aspirações homoterráqueas.
Os dois óculos (“Ósculo”) grudados face a face, pupila a pupila, beijam-se sem pejo num orgasmo de insetos.
Tais objetos entremostram e sugerem um formidável nojo e um longínquo desprezo por este mundo… Por isso mesmo, ambos são objetáveis: o mundo e eles próprios e impróprios.
… trecho do livro (págs. 174 a 205) em pdf – sem numeração nas páginas e sem páginas em branco